Bichão, lembra aquela conversa de fazer arte? Lembro. Quer mesmo participar? Quero, mas qual o plano? Ainda não tem plano, só Intuição… fiquei ruminando um jeito de dar o primeiro passo, aí teve uma hora me perguntei se a pixação era algum tipo de literatura, porque no fim das contas, pensa comigo, o produto-mensagem desse ato estético é a Palavra*.
Fiquei pensando nesse sexo dos anjos e nas minhas leituras e me deu na telha que alguns poemas caberiam perfeitamente num muro. Daí que é básica e literalmente isso, Bichão: a gente vai colar meia dúzia de poemas nos muros da cidade, vai ser nosso primeiro trabalho. E é aquilo também, sempre naquela direção-ação:criar um universo em torno dos livros, partir desse universo rumo aos Limites da Literatura, então explorar investigar o que mais pode existir no Reino da Palavra.
Dia desses viajando na minha casa-cabeça, folheando-fabulando uma porção de coisas, fui atravessado por um conto do Borges, nele o narrador comenta a poesia do povo urno, feita de uma só palavra, e eis que de um jeito natural irresistível puxei pela memória um gibi do Lourenço Mutarelli com histórias em quadrinhos num só quadro*.
Foi inevitável, Bichão, isso tem que valer alguma coisa, eu pensei, e fiz valer: macerei esses dois gênios com nosso trabalho anterior e misturei até formar um nervo, que virou esse formato: o poema de um verso-quadro.
É simples (mas é só isso): um título, um verso e uma moldura em volta, dentro desse escopo a gente pode fazer o que quiser, até se enforcar na corda da Liberdade.
Seive, Bichão! De boa? Como você sabe, por causa do Livro agora eu reparo na rua e no muro e na calçada e no tapume, e outro dia eu vi um pixo ali na Cupecê, em frente à drogaria num muro amarelo, foscado na cor azul VGN, e um recado: PIXAR NUNCA SERÁ ARTE!
Aquilo me pegou. Fiquei pensando na arte de rua e na arte de galeria e em como já faz tempo o Capital se apropria das artes todas, fiquei pensando no Duchamp e na história do mictório, nas Bienais e nas exposições a que fui nos últimos anos, pensando em como várias daquelas obras se valeram em certa medida do mesmo mecanismo proposto por Duchamp, o qual passa também por deslocar um objeto da vida cotidiana e colocá-lo em um certo-lugar-certo*, e sendo assim, com ou sem a intenção do artista, é como se o problema persistisse, é como se a arte tivesse uma delimitação adequada ao seu papelno mundo*.
Levantei para beber água e quando voltei um passarinho-eureca se empoleirou no meu ombro e disse: você percebeu também como são usados elementos de certos-lugares-certos quando se trata de absorver uma obra? Já percebeu, por exemplo, que a primeira coisa feita ao vender um grafite é enquadrar o menino na parede?
Por isso decidi, Bichão: vou emoldurar aquela frase. Que frase, mano? PIXAR NUNCA SERÁ ARTE!
Bichão, acho que a gente acertou alguma coisa com aquela história de enquadrar o pixo, aquilo de certa maneira é se apropriar da arte de galeria para fazer arte de rua. E isso é bom por quê? Não sei, mas pode ter sido um ato original. E isso é bom? Também não sei, mas eu tive uma ideia.
Selecionar três folhinhas, emoldurar as meninas e depois colar na parede como se fosse uma exposição, inclusive usando a legenda no mesmíssimo formato das que a gente vê nos museus. Um bom local talvez seja ali no Parque do Ibirapuera, entre o prédio da Bienal e o Museu de Arte Contemporânea.
E o que você acha? Acho que todo mundo tem que seguir o próprio caminho, mano. Só vai!
Eu ando impossível, Bichão, tive outra ideia: expor-inventar uma obra de rua que emule a gramática da galeria, e fazer isso nos moldes da última vez*, criando uma legenda que inclua o nome do artista, o ano de produção, a técnica e o título, e fazer essa arte usando a nossa linguagem, seguindo as pistas da nossa própria investigação. Quero saber o que você acha. Mano, para falar a verdade eu não entendi bem o que você quer fazer, mas já curti :D
Só que tem uma coisa: e o negócio da Palavra?
Bichão, a Palavra ainda é o caminho, a verdade e a vida desse projeto, a gente só vai pegar um desvio, e vale dizer que o Bruno Honorato é mais arteiro que artista.
Bichão, fiquei satisfeito com o resultado do nosso último trabalho, só que mais na forma do que no conteúdo. Lá vem… Como assim, mano? Então… Gostei de fazer aquele pastiche, de emular uma obra de galeria, é gostoso ser jocoso, e sei que há valor estético na sátira, mas quero seguir outra pista.
Qual pista? Mais no caminho de evidenciar a arte de rua, sabe? De apontar-dizer: olha isso aqui no concreto, aqui no metal, no metrô. Na cidade de São Paulo além de pixo tem borroco, lambe, tag, sticker, grafite e todo mundo colorindo-falando. Daí que eu acho uma falta de educação a gente não responder quando é justamente a conversa que A boca do muro propõe.
E foi para corrigir essa indelicadeza, Bichão, que eu inventei a próxima presepada, andar por aí de orelha em pé para ouvir o que a cidade comunica, e a gente vai flanando-escolhendo, filmando e emoldurando; que é um jeito nada sútil de dizer: Atenção! Isso pode ser uma obra de arte (ou não).
Bichão, sabe o que é borroco? Sei não. Borroco é uma arte de rua que consiste em jogar ovos com tinta numa propriedade privada qualquer. De todas as maneiras de mostrar o Desgosto essa é a minha preferida, é uma afronta colorida, é um ato equivalente ao estêncil do Banksy*.
E é por isso e muito mais que a gente vai emoldurar um borroco. E dessa vez a gente precisa concentrar o registro no ato e no processo: no ato porque (na rua) o momento e o local fazem parte da obra; e no processo porque (em alguns casos) ele É a própria obra. Só que é obviamente impossível fazer isso aí, Bruno, emoldurar um ato. Sei que é impossível, Bichão, mas eu posso tentar. E por quê, mano?
Porque criar é uma necessidade para mim, Bichão, porque eu quero contribuir com o Grande Diálogo, porque Inventar é um jeito de responder a essa esquisitice que é o Existir, porque com essas molduras tenho delírios de alargar os horizontes da arte, derrubar o sistema capitalistadiversão é coisa séria :^D